Faz agora quarenta anos que foi publicado, em junho de 1978, o livro de Abilio Barbero de Aguilera e Marcelo Vigil, La formación del feudalismo en la Península Ibérica, (Barcelona, 1979), que como continuação e conclusão dos seus trabalhos anteriores, marcou um ponto de viragem nos estudos historiográficos sobre os fundamentos sociais da Idade Média hispânica. Um dos documentos que estes dois historiadores utilizaram para demostrar a sua tese foi um reconhecimento ou declaração que cerca de quinhentos habitantes do vale de Sant Joan fizeram à abadessa Emma no ano 913: as casas, hortas e terras que cultivavam, eram possuídas por eles em nome dessa abadessa e respetivo mosteiro.
Wifredo I, conde de Barcelona (c. 840-897), uma vez conquistado o vale do Ter, repovoou-o através da fundação do mosteiro de Sant Joan de les Abadesses, cuja igreja foi consagrada no ano 887. Dotou-o generosamente para que fosse governado pela sua filha Emma, que foi a primeira abadessa. Prontamente se tornou num dos grandes centros da vida monástica da Catalunha durante a época condal. As suas terras e bens cresceram muito rapidamente, entre outras vias mediante vários judicis, dos quais conhecemos cinco durante a vida de Emma. Os judicis são atos de reconhecimento das propriedades ou de determinados direitos outorgados por aqueles que ocupam essas propriedades ou gozam desses direitos. Um deles teve lugar já no ano 904, e outros três em 913, incluindo o que aqui se apresenta. Devido à importância das personagens intervenientes, ao grande número de pessoas participantes, à geografia envolvida e à natureza jurídico do ato, este judici do ano 913 ficou muito conhecido e foi muito citado pela historiografia desde há mais de um século.
O ato foi presidido pelos condes Miró (de Cerdaña e Besalú) e Sunyer (de Barcelona), juntamente com os viscondes Ermemir (de Barcelona) e Unifred (de Girona), além de outros juízes clérigos e laicos. Na presença de todos eles, Hictor, representante da abadessa Emma e do mosteiro de Sant Joan, requer os habitantes das povoações e locais (villae) do vale do Alto Ter. Distribuídos segundo as villae onde residem, estes habitantes manifestam possuir as citadas villae (com as suas casas, hortas, vinhas, terrenos de cultivo e incultos, moinhos e árvores) no nome da abadessa Emma e das religiosas do seu mosteiro; além disso, manifestam que ocupam as villae por elas e para elas, com o dever de servi-las a elas e às suas sucessoras. Isto é feito assim, conforme é dito no documento, porque quando o conde Wifredo tomou posse do vale do Ter e construiu o mosteiro, eles estabeleceram-se no vale graças à abadessa, construindo as suas casas, plantando hortas e vinhas e transformando as terras incultas em terras de cultivo. O documento inclui quatrocentos e oitenta e seis assinaturas dos habitantes do vale. Segundo Joan Ferrer i Godoy, não existe outro documento alto-medieval que contenha uma relação nominal tão extensa, o que permitiu avançar algumas hipóteses sobre os fluxos de repovoamento iniciados pelo conde Wifredo, no fim do século IX (pela maioria de nomes de origem gótica face aos germânicos ou francos). Devido ao número destes nomes próprios, aos quais Antoni Badia i Margarit dedicou estudos aprofundados, este documento é especialmente importante para o estudo da onomástica e da toponímia catalãs. No entanto, também constitui um testemunho fundamental no processo de consolidação das transformações e mudanças sociopolíticas que se tinham iniciado com a organização territorial promovida pelo conde Wifredo el Velloso, comum, de resto, a toda a Europa latina alto-medieval.
Abilio Barbero e Marcelo Vigil utilizaram-no magistralmente para ilustrar o processo de formação do feudalismo na região setentrional da Península Ibérica, a partir da decomposição das comunidades de aldeia primitivas, como organizações gentílicas mais ou menos evoluídas, nas quais a mulher tinha um papel de destaque, tal como demonstra a importância das supervivências matrilineares. Este foi o caso dos hispani, tal como são chamados pelos capitulares da época de Carlos Magno, Ludovico Pío e Carlos el Calvo, nos séculos VIII a IX. A forma primitiva utilizada por estas comunidades camponesas foi a aprisio, ou ocupação de uma terra sem proprietário para explorá-la. No entanto, esta posse coletiva das terras por um grupo de camponeses soldados, unidos por laços de sangue e dirigidos por chefes ou maiores da sua própria linhagem, estava condenada a extinguir-se. Em alguns casos, os aprisionamentos coletivos (ocupação, apropriação e cultivo de terras virgens) transformaram-se numa grande propriedade individual, pertencente a um único membro da linhagem originária, descendente dos maiores e que tinha vínculos de dependência pessoal e de fidelidade relativamente aos reis francos, soberanos nominais do território, ao mesmo tempo que a restante comunidade ficava reduzida ao grau de camponeses dependentes. A grande propriedade estava protegida pela lei gótica ou aplicação do Liber Iudiciorum, oposta ao direito consuetudinário local, pelo qual se regiam os hispani ou pagenses (camponeses). Os maiores dos hispani, ao tornarem-se nos únicos proprietários da antiga aprisio, invocavam a prescrição de trinta anos para os bens imóveis contida no Liber Iudiciorum; além disso, uma das respetivas leis ordenava que não se usurpasse uma coisa possuída por outro sem julgamento prévio. A lei gótica, conservada pela classe dirigente da Septimania e da Marca Hispânica após a incorporação destas regiões no reino franco, era a expressão jurídica de uma ordem social do tipo feudal, de grandes domínios com campesinato dependente, semelhante ao existente noutros territórios do reino carolíngio.
Apesar disso, as comunidades camponesas mantiveram uma grande importância nos Pirinéus do lado oriental. No entanto, por último, à semelhança do que tinha acontecido às comunidades de hispani cem anos antes, ficaram sob a dependência de grandes domínios feudais. Uma das vias utilizadas para que a comunidade de aldeia primitiva se submetesse à dependência feudal de um grande senhor ou estabelecimento monástico foi a via que foi utilizada em Sant Joan de les Abadesses, no ano 913. O ato foi realizado por meio desta declaração judicial, feita a 15 de junho de 913, perante os comites e marchiones Miró e Sunyer, irmãos da abadessa Emma, todos filhos do conde Wifredo, e também na presença de viscondes, de clérigos, de homens de bem e do saião. As aldeias que passaram a depender do mosteiro são enumeradas com os nomes dos homens e mulheres que as habitavam. Segundo afirmaram Barbero e Vigil, é significativo que em alguns casos o nome da villa ou villare coincida com o do habitante designado em primeiro lugar (como nos casos de Scluvane, cujo primeiro habitante é Scluva, e outros). Na opinião destes autores, esta disposição dos nomes e a respetiva distribuição por aldeias, sem fazer distinção entre homens e mulheres, sugere que se tratava de grupos de parentes, cujos chefes aparecem no documento. Assim, coloca-se em evidência a personalidade das mulheres nesta zona de supervivências matriarcais ou matrilineares, como sujeitos com direitos, fazendo doações e realizando transmissões de bens imóveis.
Este documento provém do arquivo do mosteiro de Sant Joan de les Abadesses, cuja entrada no ACA produziu-se relativamente tarde e em circunstâncias bem conhecidas. Estão relacionadas com a secularização das canónicas agostinianas da Catalunha, incluindo a de Sant Joan, decretada pelo papa Clemente VIII, em 1592, com a atribuição das suas rendas às chamadas cinco dignidades reais, criadas nas catedrais de Vic, Barcelona e Girona. Verificou-se, então, uma disputa pela posse dos documentos entre os cónegos de Sant Joan e o arcediago ou “arquidiácono” de Badalona, uma das cinco dignidades reais, originando um longo pleito perante a Real Audiência de Barcelona, que por sentença de 1610 ordenou depositar os documentos no Arquivo Real, como era conhecido então o ACA, num armário independente, para que ambas as partes tivessem acesso aos mesmos.
Os pergaminhos, livros e arquivos de Sant Joan que entraram no ACA ocuparam, assim, um armário que foi adicionado aos que já existiam então, com o número 32 e o título de Sant Joan de les Abadesses. Segundo um inventário de meados do século XVIII, este armário continha 1343 documentos. No entanto, neste caso, seguindo os critérios predominantes na época, o sistema de armários e sacos com um conteúdo temático pelo qual se tinha organizado o Arquivo Real desde o século XIV foi desmontado, separaram-se os papéis dos pergaminhos, e estes foram reorganizados por reinados, segundo uma ordem cronológica estrita, independentemente da respetiva origem, operação que foi concluída pelo arquivista Próspero de Bofarull nas primeiras décadas do século XIX. Ao pergaminho com o reconhecimento à abadessa Emma do ano 913 correspondeu a assinatura “Real Chancelaria, Pergaminhos de Miró, núm. 3”, que é o que conserva atualmente.
Para a edição deste documento, incluindo as notas, seguimos a que foi publicada pelo diretor do ACA entre 1961 e 1982, o Dr. Federico UDINA MARTORELL, El archivo condal de Barcelona en los siglos IX-X. Estudio crítico de sus fondos, Barcelona, 1951, doc. 38, pp. 157-165.
Assinala-se a negrito o fragmento traduzido para castelhano.
ACA, Cancillería, Pergaminos, Mirón, 3
Transcrição e tradução parcial (para espanhol)